Etapa 8: Logroño a Najera
Sábado, 8 de Julho de 2023
Acordei com calma e me arrumei.
Era sábado de manhã e a cidade estava tranquila, com quase ninguém na rua com exceção de algumas pessoas lendo seus jornais e fumando seus cigarros nos cafés.
Saímos da cidade por um parque muito grande e bonito, cheio de pessoas correndo e pedalando.
Passamos por uma tenda de um senhor de barba e cabelos muito compridos e brancos que parecia o Gandalf peregrino. Uma figura bem interessante e extravagante. Carimbou nossos passaportes, nos contou umas historias sem pé nem cabeça, nos falou que já tinha percorrido mais de 50 vezes o caminho e finalizou com: “Marcelino es un poco loco”. Ele era o Marcelino.
Seguimos. Passamos por um lago gigante, ainda dentro do parque, cheio de cisnes brancos nadando e pedimos uma foto para dois Espanhóis de bicicleta fazendo o caminho. Buen Camino!
Continuamos por muitas plantações de uva e vinícolas.
No meio do caminho, um vilarejo chamado Navarrete e entramos em uma igreja impressionante com paredes cobertas de ouro do chão ao teto, com uma riqueza absurda de detalhes.
Mais vinícolas pelo caminho, uma inclusive chamada Vivanco – Finca Alto San Anton. Mandei uma foto pro meu avô, que se chama Anton.
Estava bem calor e um dia lindo. Eu estava amando todas aquelas horas debaixo do sol!
Faltavam aqui 593 km até Santiago e minha panturrilha direita e meus pés doíam muito!
Sentia minhas pernas muito inchadas do calor e só queria chegar logo, tomar uma ducha gelada e colocar os pés pra cima.
Don´t stop walking, Carolina!
Chegamos a Najera perto das três da tarde e na entrada da cidade um cara estranho de seus 60 anos e sotaque do leste europeu começou a puxar papo com a gente.
Engraçado que apesar de eu estar muito mais aberta do que sou normalmente, ainda tinham momentos que não sentia vontade de conversar com algumas pessoas e quando me sinto assim, respeito meu instinto.
O cara, que disse ser da Lituânia foi andando atrás da gente por toda a entrada da cidade tentando conversar e eu e a Thais começamos a perceber que ele estava nos seguindo para ver onde iríamos ficar.
Nós já tínhamos uma reserva no hostel Puerta de Najera e tivemos que dar literalmente uma fuga do velho estranho.
Em toda a viagem esse foi o único momento esquisito neste sentido e por mais que seja natural ter sempre precaução, era muito tranquilo e normal estar sozinha.
Via muitas e muitas mulheres solo, de todas as idades e nacionalidades.
Alias, descobri que o número de homens e mulheres que fazem o caminho sozinhas é de em média 60-70%.
Entrando na parte antiga da cidade, por sinal bem mais charmosa, ficava o albergue.
Já na recepção encontramos um monte de “amigos peregrinos”. Território seguro!
Pegamos um quarto duplo com banheiro compartilhado, super fofo, com paredes azuis, um beliche e uma varandinha de janelas brancas com vista para o rio, onde penduramos todas as nossas roupas lavadas para secar.
Eu estava começando a ficar preocupada com a minha dor na panturrilha, que irradiava pro joelho.
Quem pratica esporte de endurance costuma ter uma relação mais íntima com a dor e eu geralmente sei quando é só uma dor muscular ou quando tem algo errado. Aprendi a ser teimosa com a dor e sei que muitas vezes passa sozinha.
Fui então atrás de uma farmácia comprar um ibuprofeno e uma faixa que era o que tinha pro momento.
Demos uma volta pela cidadezinha que tinha gramados e bancos charmosos por toda a volta do rio.
Nos deitamos na grama e ficamos lá vendo o céu e a tarde.
Aquele dia estávamos meio com preguiça de socializar e fugimos do grupo todo.
Uma taça de vinho em frente ao rio e jantar em um restaurante de culinária típica local.
Aspargos brancos de entrada, bacalhau com tomates de prato principal e crema de natillas de sobremesa. E claro, mais viño, que claramente era indispensável em seu papel de relaxante muscular, rs.
Dormi rezando pra acordar sem dor.
Etapa 9: Najera a Santo Domingo de la Calzada
Domingo, 9 de Julho de 2023
O trecho eram só 22km que seriam mais fáceis se o dia ensolarado não estivesse tão quente e minha perna não estivesse doendo tanto.
Já sabia como funcionava: os dois momentos de mais dor são no comecinho até o corpo esquentar e mais no final, nos últimos kms.
O caminho começou com uma subida leve passando por trilhas de terra batida, algumas pedras, depois de single track meio beira de estrada até entrar novamente em meio a vinícolas e plantações infinitas.
Um céu azul sem nuvens e campos a perder de vista que iam intercalando as culturas e as cores.
Parecia pintura.
Chegamos em Santo Domingo de la Calçada e li sobre a historia do milagre do galo.
” Diz a lenda que no século XIV, um jovem alemão e seus pais em peregrinação, pararam para descansar em um alberque e a filha do dono apaixonou pelo jovem rapaz, mas não foi correspondida. A moça, em vingança, escondeu um cálice de prata nas coisas do rapaz e o acusou de roubo. O jovem foi preso, julgado e logo em seguida enforcado.
Quando os seus pais foram recolher o corpo, ouviram a voz de um anjo anunciando que Santo Domingo havia conservado a sua vida.
O juiz, que estava à mesa jantando, não acreditou na história contada pelos pais do jovem e exclamou: “Solto vosso filho quando este galo e esta galinha cantarem novamente” – disse apontando as aves assadas que tinha sobre a mesa. Nesse mesmo instante o galo e a galinha cobriram-se de penas e puseram a cacarejar. O jovem foi libertado e Santo Domingo de la Calzada ficou conhecida como a cidade onde o galo cantou depois de assado.“
A partir desse dia, na igreja de Santo Domingo de la Calzada , um galo e uma galinha de penas brancas são mantidos vivos junto ao altar, num galinheiro em estilo gótico, coberto com uma tela renascentista.”
Chega de história.
Era domingo e sabíamos que as coisas na cidade iriam fechar então nos sentamos logo em um restaurante que ficava na praça atrás da igreja, em baixo da marquise. Massa, vinho e gelo pras pernas.
Ao invés de um hostel achamos uma pensão. Toalhas e lençol de verdade já são itens de alto luxo a essa altura da viagem.
Tomamos banho, lavamos nossas roupas e penduramos por todo o quarto e nas janelas.
Engraçado que sempre que chegava, por mais cansada e com dor que estivesse, era só tomar um banho gelado que parecia que minha energia se renovava e já queria sair pra conhecer a cidade e bater perna.
Peguei meu chinelo, meu fone de ouvido – a playlist da viagem estava tomando forma! – e sai pelas ruas antigas em volta da igreja. Em um mapa vi que tinham umas muralhas, ruínas e quis ir conhecer.
Andei uns 2km e quando cheguei no tal lugar, era horrível e não tinha nada.
Voltei tudo e me sentei em uma praça com restaurantes, bares e mesas ao ar livre, para escrever no meu carnet enquanto comia sementes de girassol da região.
Não gostei daquela cidade, não tinha praticamente nada interessante para ver.
No quarto começamos a olhar a rota do dia seguinte e planejar o que iriamos fazer. Decidimos que mandar as mochilas pelo correio seria uma ideia maravilhosa, visto a dor que estávamos e visto que faríamos nosso dia mais longo até então: 35km.
A Thais conseguiu arranjar o transporte das mochilas pra gente dez da noite. Ufa. Dormi até mais feliz.
Etapa 10: Santo Domingo de la Calzada a Villafranca Montes de Oca
Segunda-feira, 10 de Julho de 2023
Perto das 7h deixamos as mochilas na recepção com o endereço de onde iríamos e o dinheiro amarrado no envelope. Hoje seria, excepcionalmente, em modo light travel. Amén.
Saímos da cidade por uma estrada de asfalto beirando a pista. O dia estava meio nublado e acinzentado.
Andamos cerca de 7km por mais plantações de girassól até chegar a Grañon, um povoado de cerca de 300 habitante com uma igreja no meio e um foodtruck super descoladinho tipo café chamado ” Barbackana, tudo se andará ” onde pedimos um café com croissant para comer nas mesinhas do gramado antes de seguir caminho.
Estava entrando na Província de Castilla y León e o caminho continuava plano e sem muito verde.
O sol saiu e estava bem quente, perto dos 33ºC.
Seguimos e depois de umas 4 horas de caminhada chegamos a Belorado onde tinha uma rampa com um sol-viera amarelo desenhado, cheio de bandeiras de vários países que dava em um hostel e um restaurante.
Decidimos subir para comer, beber algo gelado e descansar um pouco na sombra.
Encontramos uma Americana, um Dinamarquês que trabalhava com auxílio em países subdesenvolvidos e um Suíço viajante. Um bocadillo de jamón con queso e muita conversa.
Depois de umas 7h totais de caminhada chegamos em Villafranca.
Uma comunidade autónoma de 170 habitantes com um antigo mosteiro episcopal edificado sobre uma vila romana e restos datados dos séculos VI e IX.
Chegando no vilarejo avistei a torre da igreja românica de Santiago el Mayor e à direita, numa colina, o hospital de peregrinos, fundado pela rainha no ano de 1377 que hoje era o Hostel San Antón Abad. Uma construção grande, toda de pedra e estilo medieval, repleta de pinturas a óleo, cruzes, tapeçarias, armaduras e todo tipo de objetos litúrgicos.
Nossas mochilas nos aguardavam na recepção e como lá era provavelmente a melhor opção da região, reencontramos o grupinho de peregrinos.
A propriedade tinha um gramado gigante onde passei a tarde tomando sol e lendo o guia de peregrino sobre a historia da região. Sim, eu amo tomar sol.
Mais tarde, uma confraternização com todos em uma mesona no lado de fora!
Era aniversário do Glenn e devíamos estar em um grupo de umas 30 pessoas. Todos conversando e tomando o vinho da região, em clima de celebração e de pertencimento àquela vida de peregrinos.
Era sempre interessante observar pessoas tão diferentes socializando. Um belo experimento social, eu diria.
Depois teve ainda uma sessão de Yoga no gramado, para alongar o corpo judiado.
Programação da noite foi recolher roupas no varal, furar as novas bolhas e organizar as coisas para o próximo dia.
Buenas noches!
Etapa 11: Villafranca Montes de Oca a Atapuerca
Terça-feira, 11 de Julho de 2023.
Eram seis da manhã e pela janela do quarto dava pra ver uma faixa laranja no horizonte dividindo o céu ainda azul escuro. Foi um momento de muita paz.
Acordei agradecendo pela minha vida e por ter mais um dia. One more, one less. Make it count!
As primeiras luzes do dia começavam a apontar bem atrás da igreja e começamos a caminhar com o sol nascendo na montanha. Lindo!
Falaram que a partir do 11º dia eu não sentiria mais dores e esperei ansiosa por esse dia.
Ele chegou e a dor continuava. Quem sabe amanhã.
Andamos umas duas horas por trilhas no meio de bosques com muitos mosquitos e umidade.
Tinha que usar os bastões tipo de para-brisa.
Em certo ponto chegamos em uma clareira com alguns bancos, “obras de arte” e uma mesa cheia de comidinhas e café. Estava tocando uma versão animada de “Hey Jude“.
O tal do café era “donativo” e o dono arranjou encrenca com um dos peregrinos que segundo ele, não tinha dado dinheiro o suficiente (sim, era mais que suficiente).
O peregrino ficou muito bravo, com razão, e falou que o conceito de donativo estava errado e perguntou então o valor das coisas dando uma nota de 20 euros. O dono, por sua vez ficou muito ofendido e saiu guardando as coisas no carro para ir embora e não parava de resmungar que ele era uma pessoa muito boa e só fazia aquilo para ajudar.
Pelo caminho tinha dessas coisas: cafés donativos onde a pessoa não colocava preço e falava pra dar quanto achava ou podia.
Isso me incomodava por que eu trabalho com marketing e conheço essa tática. Sei que apesar de ter pessoas de bem fazendo por caridade, muitos oportunistas acabavam fazendo por saber que as pessoas tendem a dar mais dinheiro do que de fato vale o item/serviço, para retribuir a “boa ação”.
Obviamente foi o caso desse homem, que fez um belo papelão e acabou por estragar o significado de donativo.
Como o trecho do dia era de apenas 20km, o ritmo era tranquilidade e o foco era parar em todos os lugares para conhecer, comer, beber e curtir o dia.
Seguindo o pub crawl peregrino, paramos em outro cafézinho em San Juan Ortega para tortillas e depois em Arlanzon encontramos um bar chamado “El Alquimista”.
Uma construção muito fofa bem antiga de paredes brancas e flores vermelhas nas janelas.
Fizemos questão de parar lá naquele bar simbólico para tomar a primeira taça de viño blanco do dia e definir um lugar pra dormir.
Pouco tempo mais de caminhada e com muito vento contra cheguei em Atapuerca, um vilarejo que é Patrimônio da UNESCO por ter Sítios Arqueológicos com registro fóssil dos primeiros seres humanos na Europa, de quase um milhão de anos atrás!
Depois de deixar as coisas, o almoço foi em uma cantina de menu peregrino em uma mesa comprida com umas 15 pessoas, debaixo de uma grande árvore.
Estava ventando muito aquele dia e tudo do almoço voava. As folhas de alface, os guardanapos, as taças…
No caminho de volta o sol ainda estava alto no céu, e fui dar uma volta pelo vilarejo.
Subi na igreja no topo da colina pra sentar um pouco em paz, meditar e escrever.
Fiquei lá atrás da Igreja um tempo, sentada em uma pedra, olhando os animais pelo vale na minha frente e prestando atenção naquele momento. Mindfulness at its finest!
Já eram mais de sete da noite e o sol estava ainda alto e queimando, que sensação maravilhosa.
Estava feliz. Me sentindo muito bem, presente e plena!
Era nítido como minha mente estava mais clara, descansada, criativa.
Há dias não via rede social, só o entrava o mínimo necessário no whatsapp, email ou televisão já eram conceitos distantes e não tinha o menor interesse sobre acontecimentos mundiais.
O único livro que lia era o guia cultural da região e a informação externa era limitada à experiência em si. Era um descanso ativo.
Como são importantes esses momentos pra ganharmos perspectiva da vida!
O tempo de noite geralmente mudava e ficava frio e ventando bastante.
Voltando, peguei minhas roupas no varal ainda molhadas e fui me preparar para dormir.
Boa noite, Atapuerca!
Etapa 12: Atapuerca a Burgos
Quarta-feira, 12 de Julho de 2023.
Acordei bem cedinho por que o dia era longo e queria chegar cedo para aproveitar Burgos, a maior cidade até então.
Pendurei todas as roupas que não secaram na mochila e saí que nem um varal ambulante.
Comecei a caminhar perto das sete da manhã com Ralf, Sabine, Thais, David, Mario, Joseppe e sua filha Maria Luisa.
Logo no começo, tinha uma colina com uma grande cruz de ferro onde deixei uma das pedras, que estava carregando, e na hora me veio que simbolizava a sociedade.
Fiz uma reflexão sobre tudo que envolvia o tema e foi interessante, cheio de insights.
Pensei em como muitas vezes anulamos nossa autenticidade, para agradar e corresponder expectativas de algo que não somos. Talvez por que muitas vezes nem nós sabemos quem somos.
A gente vai aprendendo quem é pelo caminho…
Era muito bom poder compartilhar um pouco desses pensamentos com pessoas que realmente me ouviam e se identificavam. A Thais, principalmente, tinha se tornado uma grande amiga.
Era uma verdadeira terapia intensiva e ouvir e trocas historias sempre acabava me ensinando bastante.
Andamos por umas duas horas pela manhã gelada e paramos em um café em Cardeñuela Riopico. Entramos para nos esquentar um pouco e no balcão tinha vários bocadillos clássicos espanhóis.
Perto da hora do almoço nos aproximamos de Burgos e o caminho em certo ponto deu duas opções: uma entrava pelo parque e a outra pela rodovia, optamos pelo parque que apesar de ser um pouco mais longa foi bem mais agradável.
Enfim entramos na cidade e vi que Burgos era de fato uma cidade grande, provavelmente a maior que tinha passado até agora, com grandes avenidas, pontes majestosas que cortavam o rio, grandes estátuas, praças, muitos turistas, muitos restaurantes e barzinhos. Já estava adorando.
Chegando no albergue municipal Casa de los Cubos Pilgrims Hostel encontramos com o todo o restante do grupo. Comecei a perceber que eu geralmente era uma das últimas pessoas a chegar.
O Albergue era gigante, com uns 4 andares e milhares de beliches e chuveiros que não acendiam a luz.
Coloquei meu vestido que usava só em dias de turistar e fui pendurar as roupas lavadas no varal.
O almoço foi animado em um restaurante onde comemos e bebemos muito bem com uma bela vista pra Catedral. Foi uma confraternização in style!.
Depois teve visita guiada na Catedral Basílica Metropolitana de Santa María, mais conhecida como a Catedral de Burgos, famosa pelo seu estilo gótico de 1221.
Mesmo tendo feito arquitetura por alguns anos, não consigo ter dimensão de as pessoas foram capazes de construir algo como essa catedral, de forma praticamente artesanal! O tamanho, os detalhes, a precisão…era impressionante.
Sai de lá e fui dar uma volta pela cidade. Caminhei por toda a avenida, pelas pontes e pela beira do rio com árvores gigantes que faziam um portal. Me sentei no banco e fiquei vendo o movimento.
Achei uma feirinha de artesanato local na plaza mayor e depois voltei pra Catedral, que estava tendo missa.
A programação da noite foi um jantar de última ceia do sub grupo, para se despedir de David e Mario. Fomos de Viño crianza de la Rioja e vários tapas para compartir.
Aprendi que “crianza” stands for um vinho que passou pelo menos seis meses em barrica de carvalho.
Em algumas denominações excepcionais, como é o caso de Rioja, a região do vinho, é obrigatório que o vinho fique 12 meses em barrica de carvalho.
Saímos correndo para não ficar pra fora do albergue, que fechava as portas 22h.
Boa noite, Burgos!
Etapa 13: Burgos a Hontanas
Quinta-feira,13 de julho de 2023.
Buenos dias com alarme alheio tocando.
O dia era longo e amanheceu gelado.
Geralmente nas cidades maiores era um pouco mais difícil de achar o caminho certo, mas em Burgos era tudo bem sinalizado.
Na saída passei por vários monumentos e construções impressionantes como o Castelo de Burgos, que foi construído no ano 884, e o Mosteiro de Las Huelgas, fundado em 1187 pelo rei Afonso VIII de Castela. Fui andando pelo meio do antigo mosteiro que virou uma universidade.
Pensei como deveria ser estudar em um lugar como aquele e como sinto falta de ter isso no Brasil: essa beleza estrutural. Esse contato direto com a cultura. A arte mais presente no dia a dia.
Em seguida entramos em uma estrada, depois por trilhas e alguns bosques.
Hoje começava a segunda parte da viagem: las Mesetas.
A etapa das mesetas começa a partir de Burgos e vai até León em um trecho de cerca de 200km. Trecho este, considerado como um deserto por ser muito plano, seco, quente e com uma paisagem que praticamente não muda.
Muitas pessoas já tinham falado sobre como essa seria a parte mais “mental” do caminho e eles estavam certos.
Ouvimos muito também falarem que geralmente a partir dessa segunda parte o corpo já começava a acostumar com a dor e o peso da mochila e que o desafio seria outro.
Também estavam certos, mas eu ainda estava com bastante dor nos pés e nas pernas e esperando ansiosamente por esse momento de adaptação.
Em um certo ponto, no meio do nada vimos uma pequena igrejinha com um peregrino na porta que nos fez sinal para entrar.
Ele olhou pra gente e falou que tinha feito o caminho no ano anterior e que tudo tinha mudado depois de entrar naquele lugar.
Nós obviamente entramos depois dessa frase e quando entramos demos de cara com duas freiras. Duas senhorinhas que nos pegaram pelos braços como se nos estivessem esperando.
Uma delas me falou: ” Hay que tener ojos de burro, pies de peregrino e corazon de ninõ.”
Aquilo me tocou.
As freiras nos presentearam com um colar de cordão branco e uma medalhinha dourada. Foi muito especial.
O Peregrino que tinha nos falado pra entrar ainda estava lá e começou a contar sobre ele. Contou que ele tinha voltado pro caminho por que queria ajudar as pessoas. Falou também que se nós estivéssemos abertos ao caminho, a partir de agora presenciaríamos momentos místicos.
Eu gostei daquilo e falei em voz alta: ” I feel ready! I am open to the mystical path!”
Parei depois de alguns quilômetros em um restaurante em um vilarejo esquisito. Já era quase hora do almoço e isso significava, obviamente, que já era hora da primeira copa de viño blanco.
Sentei na parte de fora do restaurante com a Thais, Mikkel, Rafa, Katie, Esther e o peregrino missionário que agora tinha decidido que era médico e começou a enfaixar o pé da Katie e do Rafa.
Resumo da história: no fim eles falaram que a atadura que o peregrino fez estava doendo muito mais e eles arrancaram.
Rimos todos do tal missionário que estava mais preocupado em falar que estava ajudando do que de fato na ajuda em si, como o cara do donativo!
O mundo está cheio de auto-missionários.
Estava muito quente e seco e faltavam alguns quilômetros pela frente até Hontanas.
Segui sozinha a última parte e me senti num vídeo game.
A luz amarelada, a paisagem imóvel, sem nenhuma árvore, a estrada infinita sem nada diferente nos lados. Nada mexia. Nenhum inseto. A terra tinha parado.
Parecia um sonho, sei lá. Volta e meia eu dava uma risada meio de incredulidade.
Estava feliz de estar lá. Sentia que aquele lugar era de fato místico e não parava de pensar em todo o simbolismo do deserto.
O deserto para mim é uma passagem, um estado de espírito profundo onde nosso corpo, nossa mente e nosso espírito é hora tentado, hora redimido. Uma jornada de limpeza, morte e renascimento.
Não parava de pensar em: “Ouvir o vento, saber acalmar a mente e ouvir o coração. Conversar com o deserto, ouvir o silêncio.“
Eu me sentia exatamente onde eu deveria estar e com uma sensação de estar indo de encontro com a minha lenda pessoal.
Estava caminhando há mais de sete horas, sem água já há um tempo, com bastante dor e querendo chegar logo, quando de repente vejo um vale surgir na minha frente. Um buraco.
Como no livro, um Oásis em meio ao deserto!
Hontanas, que significava “Fontanas” ou ” fontes naturais”.
Um verdadeiro Oásis mesmo, com muita água, uma piscina pública (!!) e massagens gratuitas (!!) na Igreja! Nem acreditei.
Entrei no pequeno vilarejo de duas ou três ruas, fiz check in em um albergue com um salão no andar de baixo onde ficavam todas as beliches, todo feito em madeira reciclada, muito descolado e moderno.
Estava muito quente, meus pés estavam muito inchados e minha perna ainda doía.
A tarde foi de piscina, sol, sorvete e conversa até que me lembrei das massagens gratuitas na igreja.
Voltamos pra frente da igreja e bem quando chegamos eles estavam parando para celebrar o grupo de oração da tarde e nos convidaram para participar.
Eu tinha caído meio de paraquedas lá dentro: mirei na massagem e acertei na missa, mas quando entrei, me senti no lugar certo.
Tinham alguns bancos dispostos em meio círculo, voltados para um altar com diversos líderes e diversas religiões como Gandhi, Buda, Jesus Cristo, Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá e por assim vai.
No altar vários livros sagrados.
Nos sentamos e eles nos deram uma folha com a oração do dia, o salmo João 4:7 da Bíblia.
“Veio uma mulher da Samaria tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá- me de beber. Pois seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse-lhe então a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? ( os judeus não se comunicavam com os samaritanos.) Respondeu-lhe Jesus: Se tivesses conhecido o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe terias pedido e ele te haveria dado água viva…o que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.”
Os missionários – verdadeiros – nos incentivaram a nos perguntar e meditar na resposta de:
“Por que estou aqui?“
“Do que tenho sede?”
“Qual é a água que mata minha sede?”
E por fim nos ofereceram um copo d´água com ” a água que mata a sede perene.”
No livro do ” O Alquimista”, Santiago conhece seu amor em uma fonte. A fonte do deserto.
Talvez o amor seja a água viva que mata a sede perene, pensei
OK. Aquilo foi profundo.
Sai daquela missa e fui direto fazer massagem com uma missionária. Uma senhora das Ilhas Canárias que estava lá a trabalho voluntário, lavando e massageando os pés dos peregrinos.
Quando terminou a massagem eu me senti voando.
Parecia que ela tinha tirado minhas dores com as mãos, literalmente.
Estava renovada e me sentindo diferente, muito, muito grata por estar vivendo aquele dia. Uau!
Subi pro hostel flutuando, viajando na maionese e quando entrei a mulher da recepção me deu uma bronca e falou que estava atrasada e todos estavam me esperando para jantar, que a Paella estava pronta. Entendi que era uma tradição do albergue todos se sentarem e comerem juntos. Pan con oliva y sal, paella y viño!
Depois do jantar fui na cerimônia das bençãos que aconteceria na igreja.
Formou-se um círculo com uns 15 peregrinos e missionários e a missionária nos disse que iríamos nos abençoar. Falou que ” abençoar” significa “bem dizer” e que devemos nos bem dizer.
Fizemos uma repetição de frases como: ” Eu abençoo a terra, o céu, eu me abençoo, eu abençoo meus antepassados, eu abençoo o meu próximo…”
Foi levemente engraçado de ver a vergonha alheia de algumas pessoas porque tínhamos que olhar uns para os outros e fazer uns movimentos estranhos varias vezes, mas foi fofo e era significativo, ainda mais em um dia como aquele!
Uma coisa boa do caminho é que ninguém te julga por sair da igreja e ir direto pro bar.
Nos sentamos na praça ao lado para a sessão de relaxante muscular da noite e ficamos até começar a escurecer.
Equilíbrio né.
Essa noite demorei pra conseguir dormir. Não parava de refletir o que tinha acontecido e como em 24 horas tudo já tinha mudado.
Pensei no deserto, no oásis, nas provações, na fonte, na água, na sede e em Santiago.
Minha cabeça estava tentando absorver tudo. Parecia um filme.
Que dia, Meu Deus!
Boa noite, Oásis!
Etapa 14 – Hontanas a Boadilla del Camino
Sexta-feira, 14 de julho de 2023.
Acordei com a movimentação no quarto.
Eu já tinha um esquema mental e não devia levar mais que 15 minutos pra estar pronta pra sair.
Primeiro de tudo tinha que colocar água na bolsa de hidratação que ia dentro do mochilão então já ia com tudo pro banheiro, me trocava, escovava os dentes, enchia a água na pia mesmo e passava protetor no rosto.
Meia e tenis no pé, um shorts, uma regata, uma blusa de frio, óculos de sol e chapéu. To pronta.
Atravessamos o vilarejo e fui me despedindo mentalmente do Oásis com o dia raiando sem nenhuma nuvem no céu.
Saindo de Hontanas subimos um pouco e fomos andando pela encosta do morro com o nascer do sol nas nossas costas.
Foi um momento simplesmente mágico. Eu estava transbordando de felicidade e plenitude.
Aquele sol gigante e laranja nos encheu de gratidão por estarmos vivas.
Alguns peregrinos passaram por nós e seguimos nosso passo, no nosso tempo.
Depois de mais ou menos 1h chegamos as ruínas do antigo mosteiro de San Antón, datada do século 14, que foi governado pelos Antonianos, que se dedicavam a cuidar dos doentes que chegavam no Caminho de Santiago, funcionando como um hospital.
As ruínas eram impressionantes e quando entramos vimos um café donativo e justamente nosso grupo sentado.
Ficamos lá apreciando aquele lugar por alguns minutos e depois seguimos caminho juntos.
Paramos em Castrojeriz uma hora depois em um café muito em frente a Igreja de Santa María del Manzano onde fizemos uma visita.
Depois de um tempo começou uma subida muito árida e inclinada, estava muito calor mas com um vento forte e seco.
Terminando a subida e chegava em um ponto de mirante no topo da colina. Paramos um pouco para ver a vista, pegar agua na fonte e descansar.
Me deitei no parapeito do mirante e fiquei lá uns 15 minutos olhando pro céu e tentando silenciar minha mente.
Comecei a andar pelo mirante e encontrei escrito assim atrás de uma placa:
“Be aware of the place where you are brought to tears. That’s where I am, and thats where your treasure is.” – The Alquimist.
Nessa parte do livro Santiago monta seu cavalo pelo deserto por muitas mais horas, tentando ouvir seu coração para saber a localização do tesouro, mas não consegue se concentrar.
“Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos, porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto procurei esse meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria sonhado encontrar, se não tivesse tido a coragem de tentar...”
Fiquei impressionada no fato daquele livro ser realmente um símbolo do caminho.
“Cada momento de busca é um momento de encontro“.
Desci o morro e encontrei uma igreja com um homem que parecia ter saído de um filme da idade média. Ver aquele homem, naquele lugar, foi uma verdadeira viagem no tempo.
Segui caminhando e o vento forte parecia gritar no meu ouvido. Não dava nem pra ouvir os pensamentos. No começo fiquei abalada, até que consegui acalmar as emoções.
Andei em silêncio por muito tempo, meditando sobre o vento e sobre o levante.
Depois de um tempo cheguei a Boadilla del camino, um vilarejo de 2 ruas e 100 habitantes com uma igreja no meio da praça e o hostel do lado.
Cheguei no Albergue el Camino e descobri que o lugar era de um Brasileiro.
Eu era sempre uma das últimas pessoas a chegar, mesmo saindo praticamente no mesmo horário que a maioria. Sempre me perguntava o motivo de terem tanta pressa de chegar no destino final, principalmente em lugares como aquele, sem absolutamente nada pra fazer!
Tem pessoas que não entendem que a vida acontece pelo caminho.
Entrando no quarto percebi que estava simplesmente exausta física e mentalmente.
Parecia que o vento tinha sugado minha energia e pensamentos. Sentei no chão e comecei a rir de cansaço.
Tomei uma ducha pra tirar a areia do corpo, lavei as roupas e desci pra área comum.
Me sentei na beirada da piscina com eles com os pés na água e fiquei conversando com a Esther.
Ela era Holandesa e trabalhava com crianças vulneráveis como psicóloga. Me contou sobre os problemas que enfrenta em Amsterdã, como é morar em uma cidade que as drogas são liberadas e como isso influencia nos jovens.
Achei muito interessante, fiz várias perguntas e falamos sobre psicanálise e Carl Jung!
Pra fechar o dia fui furar as bolhas do pé fazer curativos e organizar as coisas pro dia seguinte.
Estava bem cansada do dia, com uma provável insolação e me deitei mais cedo que de costume.
Continua…