
Torres del Paine – Circuito O
135 km de natureza selvagem e silencio absoluto.
E mesmo assim — ou talvez justamente por isso — é tudo intenso, tudo inesquecível.
Torres del Paine te tira da rotina, do controle, do automático.
E te coloca de volta no corpo, no passo, no agora.
Essas expedições nunca são só sobre caminhar.
São sobre reencontrar o nosso próprio ritmo.
Alguns pontos técnicos que valem ser comentados:
Durante o planejamento da viagem, eu quase desisti. Consultei algumas agências de viagem brasileiras e chilenas, mas achei os pacotes bem caros.
Depois de muitas pesquisas, algumas ligações em espanhol e várias tentativas, consegui fazer a reserva da data e da barraca diretamente com o Parque Nacional Torres del Paine.
Pra quem está disposto a gastar mais e quer ter o mínimo de trabalho possível, é possível reservar uma vaga em quarto compartilhado e também incluir alimentação nos refúgios ao longo do caminho.
Mas faça o que fizer: não vá sem reserva.
O espaço é realmente limitado, principalmente em algumas épocas do ano. Eu mesma vi pessoas sendo barradas na entrada do parque e tendo que voltar para Puerto Natales.
Na minha expedição, optei por uma barraca montada e pré-alugada, sem saco de dormir e sem alimentação inclusa.
Por isso, o Dia 0 em Puerto Natales foi reservado para organizar e comprar todos os itens essenciais da trilha, como: fogareiro, gás, comida de montanha e outros equipamentos básicos.


O PLANO:

Dia 1 – Central → Serón (~9 km)
De Puerto Natales foi bem simples pegar um ônibus que me levou até o Refugio Central, de onde inicia Circuito O.
Data: 29/12 – Primeiro dia, céu azul e algumas nuvens, clima ameno, vento leve e o coração acelerado de quem sabe que está prestes a viver algo inesquecivel.
O trecho entre Central e Serón é considerado um dos mais tranquilos do circuito — e é perfeito para aquecer corpo e mente. Mas apesar da altimetria suave, a beleza do caminho é avassaladora. Logo nos primeiros quilômetros, fui cercada por um cenário de campos verdes salpicados de flores e cavalos selvagens pastando em liberdade.
Foi nesse fim de tarde que sentei sozinha no meio do campo, cercada por margaridas, olhando o céu se abrir em um tipo de silêncio compartilhado.


A vegetação nesse trecho é composta por campos abertos, pequenos arbustos, flores silvestres e um tipo de verde que parece mais vivo do que em qualquer outro lugar. O vento por vezes acelera, como se viesse em ondas e lembrando que ali quem manda é a natureza. Mas logo ele se acalma, como se dissesse: “relaxa, você chegou”.
Cheguei em Serón no meio da tarde. Um acampamento simples, mas charmoso, rodeado por campos floridos, montanhas ao fundo e uma atmosfera de tranquilidade. A estrutura é básica: banheiro, chuveiro com agua quente, uma tenda central para cozinhar, barracas suspensas, e um chalezinho-restaurante que vendia vinho.
Primeiro dia precisa ser celebrado para dar sorte.



Dia 2 – Serón → Dickson (~18 km)
Data: 30/12 – Acordar em Serón foi uma experiencia otima depois de e uma noite incrivelmente bem dormida.
A trilha começa ganhando um pouco de altura, e o presente vem rápido: a primeira vista panorâmica da imensidão azul-esverdeada do Lago Paine, ladeado por montanhas nevadas que pareciam pintadas à mão.
Era difícil caminhar sem parar o tempo todo só pra olhar, só pra respirar mais fundo, só pra agradecer.
O clima estava perfeito — céu completamente aberto e sol forte, sem uma nuvem por longos trechos, o que é quase um milagre na Patagônia. O vento, sempre presente, dessa vez veio como aliado.
O terreno é variado: alguns trechos de subida, trechos planos e descidas que aliviam. O visual alterna entre mirantes absurdos, florestas de árvores torcidas pelo vento, campos abertos com flores silvestres e rios que serpenteiam a trilha.




Foram mais de 6 horas de caminhada com pausas contemplativas e ritmo constante até a chegada em Dickson. De repente, ali estava o acampamento, às margens de um lago glacial, com vista privilegiada para o Glaciar Dickson, imponente, silencioso, intocado.
Sentei no chão, tirei as botas e olhei pro horizonte em silêncio.



O Dickson foi o meu refugio preferido. Tinha uma vibe meio Spring Break de adultos rs: pessoal animado, curtindo o dia e o lugar impressionante a beira do lago. Recompensa pelo caminho longo.
Dia 3 – Dickson → Los Perros (~11 km)
Data: 31/12 – O último dia do ano começou com organizar o caos controlado do mochilão (com direito ao café da manha classico: drip coffe e R-action de chocolate na caneca), parti rumo ao acampamento Los Perros, num dos trechos mais mágicos e selvagens do circuito.
A trilha do dia foi quase toda por dentro da floresta. Um caminho mais fechado, mais úmido e mais silencioso. Aqui a natureza é mais densa, mais crua. A vegetação muda, o terreno fica mais técnico com muitas raizes expostas e arvores caidas que mais parecia um cemitério de uma outra era.
A altitude começa a subir discretamente e o frio e umidade começa a aumentar.


E então, depois de uma subida avistei a geleira perdida… o Glaciar Los Perros
Uma parede de gelo azulada, encravada entre montanhas e despejando suas águas congeladas num lago verde-leitoso surreal. Eu parei. Fiquei ali sentada um tempo, em silêncio ate que o vento me obrigou a ir embora e me lembrou que eu não tomo as decisoes por la.
Nesse lugar somos apenas visitantes.

Depois da contemplação, segui por mais algumas horas até chegar ao acampamento Los Perros.
Esse é, sem dúvidas, o refúgio com menos estrutura de todos. Extremamente simples, rústico, com um abrigo central sem quartos, sem água quente… apenas o espaço de camping ao redor.
Meu corpo, pelo suor e pelo clima úmido, esfriou rápido — e eu senti muito frio. Tentei sopa, chá, café… e nada. Meu corpo não esquentava de jeito nenhum. Saí pra caminhar e explorar os arredores do glaciar — isso ajudou um pouco a acelerar o metabolismo. Que lugar inexplicável.

31 de dezembro. Noite de réveillon.
Sem champagne, sem banho, e com muito frio.
Foi assim que escolhi passar a virada de 2023: isolada dentro da barraca, num refúgio no Glaciar Los Perros, Parque Nacional Torres del Paine, Chile.
Nesse dia que percebi: terminar o ano ali, longe de tudo, era um presente.
Não teve festa, nem fogos, nem contagem regressiva.
Teve montanha, introspecção e uma presença absoluta que nenhuma virada urbana teria me dado.
Dia 4 — LOS PERROS → PASSO JOHN GARDNER → CAMPAMENTO GREY
Data: Primeiro dia de 2024 começou com o trecho mais desafiador e técnico do Circuito O: a travessia do Paso John Gardner, ponto mais alto de toda a expedição, com aproximadamente 17 km | 1.200m de altitude.
A saída do acampamento Los Perros foi aconselhada por todos a ser bem cedo por que esse é de longe o dia mais longo e mais desafiador. A trilha já começa exigente subindo bastante um terreno íngreme, lamacento e repleto de raízes expostas, que aos poucos vai ganhando neve e gelo. O ar fica mais frio, o vento corta o rosto, e cada passo exige atenção. Dependendo da época do ano é necessario o uso de crampons!



O ponto alto (literalmente) do dia é a chegada ao Paso Gardner. Lá de cima, o visual é surreal: uma imensidão branca e azul do Glaciar Grey se estende por quilômetros. Um oceano congelado, cercado por picos nevados. A vista recompensa o esforço e cala qualquer pensamento.

A descida até o acampamento Grey é longa e cansativa. São mais de 1.000m de perda de elevação em terreno técnico, escorregadio, com pedras soltas e passagens estreitas ao lado de penhascos. Leva tempo – demorei umas 3h descendo – e foi de longe uma das piores decidas que ja fiz com mochila pesada. Mas aos poucos, a paisagem vai se transformando — o glaciar fica mais próximo, a vegetação começa a reaparecer, e o som dos rios quebra o silêncio glacial.
Depois de quase 9h cheguei no acampamento Grey. Super estruturado, com área de camping e quartos compartilhados, espaço comum coberto, banheiro e vista privilegiada. Um lugar excelente pra recuperar as energias depois de um dos trechos mais brutais da Patagônia. Tudo que eu queria era uma banho quente, uma pizza e um vinho!
Dia 2 – De Grey até Paine Grande
Data: 2 de Janeiro. Acordei cedo no Refúgio Grey, organizei o equipamento e tomei café com R-action. A trilha do dia era uma travessia tranquila e bem mais leve comparada ao dia anterior, mas ainda assim, com trechos expostos ao vento e bastante irregulares.
O percurso segue margeando o Lago Grey, com trechos estreitos, algumas descidas íngremes com pedras soltas, e vegetação baixa. Os bastões de caminhada ajudam bastante aqui. O vento é constante — e em alguns momentos parece que vai te arrancar da trilha penhasco abaixo.


Importante: esse trecho tem controle de horário. A entrada na trilha fecha às 15h, então é essencial sair cedo. Há um posto de controle logo na saída com aviso claro. E sim, eles realmente barram quem tenta passar depois.

A paisagem é linda e muda o tempo todo — o lago vai ficando mais distante, o terreno vai se abrindo, e você começa a ver a cordilheira ao fundo se formando com os Cuernos del Paine.


A chegada ao acampamento Paine Grande foi cedo. Estrutura grande, com muitas barracas montadas, áreas comuns e até restaurante. É o refúgio mais cheio até aqui.
Dia 3 – De Paine Grande até Los Cuernos (com ataque ao Vale do Francês)
Acordei com a garganta ruim e corpo começando a dar sinais de gripe mas a unica opçao é seguir o roteiro! E o dia prometia ser o mais longo com 25 km (ida e volta ao mirante + trecho até o acampamento). A trilha começou tranquila, margeando o Lago Skottsberg, com vista da cadeia montanhosa do Vale do Francês. Cheguei no início da subida pro Vale Francês — onde fica o acampamento Italiano, ponto estratégico pra quem vai fazer o “ataque” ao mirante. Deixei a mochila lá (há um espaço pra isso) e segui leve pra subida.



O Vale Francês é impressionante desde o início. Logo à esquerda, a geleira suspensa do Cerro Paine Grande vai rugindo e desabando gelo com um estrondo seco, como um trovão que corta o silêncio da floresta. A cada quilômetro, a paisagem muda: floresta fechada vira campo de pedras, que depois vira mirante de vales infinitos.
Cheguei ao Mirador Britânico com o tempo virando — nuvens densas fechando e chuva no cume das montanhas. Mesmo assim, o lugar tem uma energia absurda. A formação das torres e agulhas é surreal, parece que você está dentro de uma pintura em 3D.



Descida correndo pra ganhar tempo e pra esquentar o corpo. Peguei a mochila de volta e segui ainda mais alguns looongos e demorados quilômetros. Quando achava que estava chegando, nao estava.


Ate que chegou finalmente. Los Cuernos: um acampamento bonito, bem estruturado e com visual de tirar o fôlego — o lago ali tem um tom turquesa que parecia pintado à mão. Foi um bom lugar pra tomar um banho bem quente e tentar me recuperar de um dos dias mais exigentes da expedição. Pizza de salmão e dormir pra fechar a noite e tentar acordar melhor.


DIA 5 – De Los Cuernos até o Acampamento Central
Depois da intensidade do dia anterior, esse foi um trecho mais suave — quase um respiro antes do gran finale.
Saí de Los Cuernos sem pressa e com febre. O clima estava instável, com céu fechado e rajadas de vento que te fazem lembrar que você está na Patagônia. A trilha corre paralela ao lago Nordenskjöld, com suas margens de pedras cinzas e águas absurdamente verdes. A vegetação começa a mudar de novo: menos floresta, mais campos abertos e arbustos retorcidos pelo vento.
Começou a chuva e a unica coisa que eu queria era chegar e descansar pro ataque às Torres no dia seguinte

DIA 6 – Ataque ao Mirador Torres (bate-volta saindo do Acampamento Central)
Acordei cedo ainda doente mas um pouco melhor pra encarar os 21 km do dia. Sem mochila, só com o necessário pro ataque: comida, água, corta-vento, gorro. Era o dia de subir até o mirador que dá nome ao parque – Las Torres.
O início da trilha é tranquilo, com subidas suaves por entre bosques e vales abertos. O visual vai se revelando aos poucos, e o barulho do rio acompanha boa parte do caminho. O clima estava fechado, mas não ameaçador – aquele típico céu patagônico que muda de humor a cada meia hora.
Depois de cerca de 3h de caminhada, chega na base da subida final. A última hora é bruta. Uma pirambeira de pedras soltas, ziguezague constante e vento gelado na cara.
O mirador é um clássico por um motivo.
A vista é surreal: as três torres de granito se erguem brutas, verticais, como lanças saindo da terra. A lagoa glacial embaixo tem um tom verde leitoso e o silêncio ali tem peso. Não é só sobre beleza — é sobre chegar. Sobre ter caminhado mais de 100 km pra estar ali, de frente pra uma das imagens mais emblemáticas da Patagônia.


Fiquei ali um tempo, com o vento batendo forte e o rosto molhado de suor e emoção. Comi, respirei fundo, tirei a foto clássica e comecei a descida.

Voltei pro acampamento Central feliz e com fome. As usual.
Missão cumprida!
Circuito 0 concluído com sucesso.