Disclaimer: Se você chegou aqui na esperança de ler rapidamente um roteiro com dicas práticas, sinto decepcionar. Mas se está aqui para ler um relato sobre os detalhes históricos, acontecimentos marcantes de cada dia, pessoas e notas pessoais que construíram a experiencia, aí sim está no lugar certo.
Bem vindo!
Etapa 1: St Jean Pied du Port a Roncesvalles
Sábado, 1º de Julho de 2023.
Acordei com as francesas do meu quarto conversando antes das 6:00. Estava animada e queria mais era levantar logo e ir viver meu primeiro dia de peregrina.
Vi pela janela que o dia estava bem nublado e ameno como era esperado pela previsão.
Fui procurar o café da manhã do hostel, e lá encontrei café com croissants e seis pessoas falando em Francês. Já estava no clima.
Então era isso: mochila arrumada, roupa de trekking, tênis e bastões. Partiu Pirineus!
Sai do hostel, comprei uma faixa de cabeça da buff em uma lojinha pra proteger o ouvido do vento e entrei na igrejinha da cidade pedir a benção para começar a jornada. Que Santiago me acompanhe!
De Saint Jean Pied de Port, há duas maneiras possíveis de chegar a Roncesvalles: seguindo a chamada Rota Napoleon através das montanhas ou através da cidade de Valcarlos, descendo no vale.
Escolhi a Rota Napoleon, uma subida constante de 20 km e depois 5 km de descida até Roncesvalles, que além de ser a rota mais popular e mais bonita por conta das vistas deslumbrantes, possui 1.440m de elevação positiva em um percurso bem montanhoso com subidas e todos os tipos de terreno, conhecido por ser um dos trechos mais difíceis do caminho.
O percurso iniciou nas subidas de asfalto e seguiu por trilhas e pequenas estradas rurais.
Já no começo conheci a americana professora de Frances e sua amiga francesa que trabalhava com artigos esportivos e caminhamos juntas até chegar no refúgio Orion, onde paramos tomar um café para esquentar e pegar água.
Segui sozinha e assim andei por muito tempo na paisagem linda e bucólica.
O soundtrack ambiente vinha dos sinos nos pescoços das vaquinhas e a neblina dava um ar místico.
Apesar do friozinho, vento e chuvisco o cenário era meio surreal, como se estivesse entrando nas nuvens, em outro mundo.
Hoje vejo que provavelmente estava mesmo.
Muitos peregrinos passavam por mim e eu passava por eles mas percebia que, assim como eu, estavam todos imersos no seu próprio momento.
Na trilha, no meio das montanhas vi um pastor com suas ovelhas e pensei em Santiago.
Não senti dificuldade física em nenhum momento mas fui em um ritmo bem tranquilo, aproveitando ao máximo a paisagem. Estava adorando aquele trekking vibe floresta encantada.
Já mais pro final das trilhas, antes da grande descida a Roncesvalles, conheci a Thais, Brasileira que morava há 8 anos em Barcelona.
Nossa sintonia foi total e em algumas horas já éramos amigas de infância!
Após quase 7 horas caminhando no total, cheguei em Roncesvalles, um vilarejo com uma rua e um grande monastério do século XIII, a Igreja Colegiada Real de Santa Maria de Roncesvalles, fundada por volta de 1127, pelo o bispo de Pamplona a mando do rei Afonso I, dando forma ao centro populacional de 20 habitantes que é hoje um refúgio municipal exclusivo para peregrinos.
Um lugar diferente de tudo que já tinha visto, perdido no meio das montanhas.
Estava frio, chovia lá fora e a única coisa que queria era um banho quente depois de tantas horas de baixo daquela garoa fina e vento.
Mais tarde fui no único restaurante do vilarejo comer meu primeiro menu de peregrino, que é tipo um combo executivo do peregrino geralmente por 10-15 euros, com entrada, prato principal, meia garrafa de vinho e sobremesa! Comi llomo y uevo com patatas, pan y vino!
Jantei com a Thais, uma Ucraniana e uma Espanhola.
A Ucraniana de 21 anos, nos contou sobre como era viver em uma zona de guerra, sem segurança do futuro e sobre como o ser humano se adapta até a isso.
Foi interessante o choque cultural entre eu e Thais e as duas meninas, cada uma com uma visão de mundo, cada uma com uma história, vontades e motivos completamente diferentes.
Depois do jantar fomos na missa dos peregrinos na igreja do monastério e dei mais uma volta ao redor do vilarejo enquanto via o por do sol.
Voltei pro hostel pra tentar dormir mas o jetlag bateu forte e rolei na cama até tarde. Estava ansiosa e queria acordar logo!
Etapa dois: Roncesvalles a Zubiri
Domingo, 2 de Julho.
Saí do hostel mais tarde do que pretendia por que só consegui pegar direito no sono quando já era de manhã.
Na saída já vi a clássica placa SANTIAGO DE COMPOSTELA 790km e claro que pedi uma foto para registrar.
Andei por um bosque e por umas beiras de estrada até chegar em Burguete Auritz, a primeira cidadezinha que achei um café aberto ao lado da igreja.
O dia tinha começado meio chuvoso e nublado, com aquela névoa e friozinho mas como o caminho tinha muitos bosques, foi uma caminhada bem agradável com muita natureza e florzinhas de todas as cores.
Caminhei o tempo todo sozinha, e quando a chuva apertou eu parei em um bar esquisito com alguns peregrinos e muitos motoqueiros. Não gostei da vibe daquele lugar e rapidamente segui o caminho após comer uma tortilla com mais um café com leite.
Continuei pelas trilhas e bosques e em uma montanha subi uma parte fora da estrada para ver a vista e presenciar uma chuva com sol. Ri sozinha: casamento de Espanhol.
Comecei a descida até Zubiri por um caminho cheio de pedras soltas, bem devagar, pra não sobrecarregar meus joelhos e pés. Já estava sentindo os primeiros sinais das horas andando com o peso extra.
Conforme fui descendo a montanha o tempo foi abrindo e avistei o pequeno povoado de Zubiri. Logo na entrada passei por uma ponte medieval de pedra do século XII sobre o rio Arga – alias, Zubiri significa “Vila da Ponte” em língua vasca – E diz a lenda que diz que, os animais que passam embaixo dos arcos da ponte se curam de qualquer doença, inclusive de raiva, por isso a ponte é chamada de Puente de la Rabia.
Já parei no primeiro Hostel que vi, literalmente em cima da ponte. Eram quartos compartilhados com umas 10 beliches, com direito a vista pro riozinho. Deixei minha mochila no locker e saí atras de algo pra comer. Me sentei no gramado às margens do rio de baixo da ponte e fiz picnic com uma bela cartela de jamon cru, um toblerone e uma coca zero – Sorry, to de férias – enquanto tentava relaxar meus pés na água gelada e tomava sol.
Uma bela tarde de Domingo, eu diria.
Tomei banho, lavei as roupas e mais tarde sai para jantar no único restaurante aberto que só tinha umas tortillas horríveis e nem tentei comer. Jantei uma taça de vinho e um Whey e fui sentar no banco do rio para escrever.
Estava entediada com aquele lugar e não senti que estava me encaixando com nada nem ninguém naquele dia.
Quem já esteve em um vilarejo no interior da Espanha sabe que aos domingos nada funciona. Nem mesmo a igreja!
Fui dar uma última volta e encontrei duas francesas muito simpáticas para me fazer companhia, pena que a volta na cidade de duas ruas durou 10 minutos. Melhor voltar e dormir, alias, tentar!
Se ninguém te contou, eu conto: o ronco é um problema sério em um quarto com 10 pessoas e essa noite foi difícil! Buenas noches!
Etapa 3: Zubiri a Pamplona
Segunda-feira, 3 de Julho.
Acordei bem cedo com o barulho no quarto antes das 6h.
Terceiro dia de jornada e hoje chegaria a Pamplona, cidade grande e cheia de coisas para conhecer, diferente de Zubiri!
Comecei a andar com as primeiras luzes do dia saindo da montanha e foi uma experiência bem legal sair da cidadezinha e andar por alguns bosques ainda meio escuros. Dei de cara com um lindo cavalo branco em um pasto que marcou o nascer do sol e depois atravessei alguns quilômetros por uma área industrial meio chata até chegar em um vilarejo onde parei para encher minha garrafa d´água.
Parei em um café bonitinho com uma grande escultura metálica de um peregrino e estava comendo un napolitano y un café con leche quando vi um menino parado olhando um mapa daqueles tipo “Guia 4 rodas” . Achei vintage, mas ele parecia perdido. Jacomo Rossi, o italiano de 19 anos, sonhador e falante. Expliquei pra ele sobre o APP de celular chamado ” Buen Camino” feito para peregrinos, com todas as informações que ele poderia precisar assim como mapa detalhado dos percursos, possibilidade de criar os trechos que deseja e opções de albergues municipais em cada vilarejo.
Seguimos parte do caminho juntos filosofando sobre a vida.
O dia estava muito bonito e ensolarado e perto da uma hora da tarde cheguei no meu destino.
Pamplona, que é a capital da província de Navarra, no norte de Espanha tem uma história que remonta ao 1º milenio a.C. A cidade tem o centro histórico dentro dos limites de uma muralha com mais de 5km de extensão, igrejas de arquitetura gótica e a tradicional Festa de San Fermin em julho.
Estava entrando na cidade murada e ia começar a procurar um lugar pra ficar quando vi que Thais tinha me mandado o endereço do refúgio municipal dos peregrinos para encontra-la.
Cheguei no Alguergue Jesús y Maria, que ficava bem no centro histórico ao lado da Catedral.
O albergue era literalmente dentro de uma igreja com corredores imensos com mais de 100 beliches. Fizemos check-in, pegamos as camas e tomamos banho num chuveiro péssimo que tinha uma válvula que desligava a cada 7 segundos.
Fomos dar uma volta pela cidade e almocei em um restaurante bem bonito, com várias peças de jámon penduradas pelo teto com a Thais, o Davis; Americano de North Carolina e Julian; o Espanhol e professor da região de Murcia.
O almoço foi muito agradável e conversamos por horas, cada um contando sobre sua vida.
Tomamos vinho e comi carne de touro, prato tradicional da cidade por conta das touradas.
No fim Davis fez questão de pagar a conta da mesa e nos falou que poderíamos retribuir o gesto por alguém que sentíssemos vontade ao longo do caminho. “Don’t need to thank, just retribute!”.
Saímos do restaurante e fomos dar uma volta na cidade que estava uma verdadeira festa e tinham pessoas do mundo todo por conta do festival das touradas de San Fermin que aconteceria lá nos próximos dias. A cidade estava cheia de pessoas sentadas nas calçadas, bebendo sangria, ouvindo musica ao vivo, jogando conversa fora e aproveitando a vida! Dulce far niente!
Quis andar por todas as ruas da cidade, fazendo a volta pelas muralhas e depois encontrei o pessoal novamente para mais um vinho branco enquanto o sol se punha.
Eu já falei que amo a Europa no verão?
Voltei pro hostel para tentar dormir, mas essa noite eu ganhei na loteria e dormi em cima de um senhor que parecia mais um trator. Era simplesmente insuportável e eu dormi muito mal.
Fico impressionada na capacidade de roncar das pessoas. Aff!
Etapa 4: Pamplona a Puente la reina
Terça-feira, 4 de Julho.
Em um salão com mais de 100 pessoas é praticamente impossível não acordar com o barulho de manhã. Tinha dormido muito mal mas decidi levantar logo, e sai um pouco depois do grupo.
Acordei com dor no pé e na região da tíbia e achei melhor tomar um dorflex antes de sair.
Tomei café na esquina do refúgio, comecei a caminhar e demorei um bom tempo até sair da cidade.
Alguns quilômetros depois passei pelas primeiras plantações de girassóis da viagem e enquanto tirava fotos conheci a Laura, uma Espanhola, professora infantil, que morou em NY e era muito simpática. Ficamos amigas e fomos conversando, nos distraindo até começar a famosa subida do Alto dos Perdones.
A subida pela trilha de torres eólicas era difícil e com muito vento. O peso da mochila estava começando a dificultar as coisas e a dor chata nos pés, nas pernas e no joelho estava mandando lembranças.
Esse monte, ritualisticamente, é dedicado ao exercício da concessão do perdão a si mesmo e aos outros por erros cometidos. Aceitei o desafio e me propus a meditar sobre todos que um dia me fizeram mal de alguma forma e todos que eu possa ter ofendido ou feito mal. Pedi perdão por ter sido egoísta, insensível, imatura. Pedi perdão por tudo, perdoei a todos e principalmente a mim mesma.
O vento deve morar aqui pra levar tudo isso embora, pensei.
Cheguei no topo do morro depois de um tempo e vi as esculturas de metal.
“Donde se cruza el camino del viento con el de las estrellas”
Eram os dizeres que representam o encontro da caravana – guiada pela Via Láctea através do Caminho de Santiago, o Caminho das Estrelas – com o vento constante que sopra na colina e a evolução histórica desta rota milenar.
Comecei a descida bem devagar pelas muitas pedras soltas e a caminhada até o ponto final foi penosa e demorou para passar.
Enfim cheguei em Punta la Reina e escolhi o primeiro hostel da cidade, por motivos de ser descoladinho e ter placa de massagens!
O quarto compartilhado com 6 beliches estava vazio quando cheguei então aproveitei pra tomar um belo banho e secar o cabelo com secador!
Quando sai descobri que tinha ficado presa pra fora do quarto e tive que pedir ajudar pros meus novos roomates: Dany e Olivia de Wisconsin e Katie de Seattle.
Sai pra dar uma volta e conhecer a cidadezinha. Andei pela ponte construída para a passagem de peregrinos há mais de mil anos e me sentei em um banco ao lado do rio enquanto tomava um sorvete.
Muito doido imaginar a quantidade de pessoas que já tinham passado por lá.
Fui a missa e para minha surpresa o padre falou sobre o tema que havia pensado o dia todo: Perdão.
Falou que é preciso manter o coração aberto, sem ficar olhando para trás, para que se possa seguir em frente e receber o novo.
No final o padre chamou os peregrinos na frente do altar e nos presenteou com um colar de um coração vazado: o coração aberto!
Aquilo me tocou e foi como uma cerimônia de conclusão. A cerimônia do perdão.
Jantei em seguida com a Thais, Laura, Julian e Davis em um restaurante qualquer da ruazinha principal e já estava me sentindo parte de um grupo que crescia a cada dia.
Era legal de ver as pessoas criando amizades entre elas.
Voltei pro hostel e me preparei para dormir feliz e com o coração aberto.
Etapa 5: Puente la reina a Estella
Quarta-feira, 5 de Julho.
Acordei sem pressa, organizei tudo com calma, fiz minhas bandagens nos pés que já tinham as primeiras bolhas e saí para o quinto dia!
Atravessei novamente a cidade e parei em uma padaria café chamada Taverna para comprar meu café da manhã e me sentei na mesinha da calçada.
Andei sozinha por boa parte do percurso.
Estava na região de Navarra e os vários vilarejos que passava eram da época medieval com construções em pedra característica.
Em algum momento encontrei um grupo e conheci o David, Parisiense e seu amigo Mario, de Barcelona que caminhariam apenas até Burgos e depois iriam para Menorca terminar o verão por lá.
Eles me apresentaram a um casal Suíço de lindos olhos azuis, o Ralf e a Sabine – queridíssimos – e também ao Italiano Giuseppe e sua filha, Maria Luisa de 16 anos.
Andei com eles por um tempo e fiquei encantada com a naturalidade em que a conversa variava entre diversos idiomas e todos se entendiam. Gostei de todos eles de cara.
Percebi que os Suíços em especial tem uma habilidade impressionante com línguas. Ralf por exemplo, era professor de alemão e falava perfeitamente Inglês, Francês, Italiano e Espanhol.
Aquilo era uma inspiração pra mim. Um dia ainda serei poliglota!
Andamos juntos por um tempo até que me distanciei deles e depois de um total de 5h caminhando, cheguei a Estella.
Na entrada da cidade tinha em um pedra cravado: “Estella es ciudad de buen pan, excelente vino, mucha carne y pescado y toda clase de felicidad”. Me parece perfeito, pensei.
Entrei pela parte baixa da ciudad e fui ao encontro da Thais no refúgio municipal, cuidado por voluntários da igreja. Essa foi minha primeira experiencia em um donativo, onde cada peregrino contribuía com uma doação e tinha direito a dormitório, banheiro, e ainda um café da manhã simples. Era muito limpo, confortável e ainda era separado homens de mulheres. Mas tinham regras: entrada até 22h e saída até 7:30.
Geralmente depois que chegava nas cidades a programação não variava muito entre: banho, descanso, fazer funções de lavanderia, tour pela cidade, farmácia ou mercado, sentar na praça, tomar sorvete, confraternizar com outros peregrinos enquanto come e toma vinho, etc!
Minha vontade de olhar o celular, responder whatsapp e mexer no instagram estava beirando a zero.
Fala sério se não da pra passar uns meses assim?
Seguindo o roteiro, tomamos banho, lavamos as roupas e encontramos a Laura para almoçar, just the girls, em um restaurante próximo ao albergue. Menu peregrino: sopa de lentellas, llomo y vino!
Nota de rodapé: Já estou me acostumando a beber vinho em todas as refeições e me perguntando por que não levar este hábito para a vida.😛
Passeamos um pouco pela cidadezinha medieval e fomos a missa, que descobrimos ser na verdade de 7º dia de alguma cidadã de Estella. Cômico se não fosse trágico!
Para fechar a noite, compramos uma capa de chuva pro dia seguinte e saímos correndo pra não ficar pra fora do hostel. Bora dormir que amanhã tem mais!
Etapa 6: Estella a Torres del Rio
Quinta-feira, 6 de Julho.
Acordei cedo e tomei café da manhã donativo na cozinha do hostel. Um café com leite com bolacha maria e geléia.
Saí para caminhar com a Thais, o Davis e Glenn, um senhor Australiano muito auto astral.
Estava com bastante dor na perna e nos pés e já comecei o dia com um anti-inflamatório e um advil.
Nos perdemos pra achar a saída da cidade, entramos no meio de uma feira de produtores locais para comprar frutas e passamos por uma concentração de pessoas se preparando para ir a Pamplona para San fermin. Todos em seus trajes brancos e vermelhos!
Nos primeiros 2 km depois de Estella, em Ayegui, passamos pela famosa fonte de vinho da Bodega Irache. No alto da parede ao lado da fonte, uma placa dizia: “Peregrino, se quieres llegar a Santiago com fuerza y vitalidad, de este gran vino echa un trago y brinda por la felicidad”.
Infelizmente não tinha uma garrafa pra encher e tive que me contentar apenas com um gole direto na minha viera. E ok, eram 8h da manhã. Mas foi simbólico e brindei pela felicidade!
Estava aumentando progressivamente a distância por dia e seria a primeira vez que faria aproximadamente 30 quilômetros. As bolhas estavam começando a aparecer e a caminhada em alguns momentos era um pouco penosa.
Segui por todo o tempo com os três, conversando, ouvindo histórias e filosofando. Fomos assim caminhando por muitas horas.
Refleti muito sobre como era significativo o ato de se apresentar para outras pessoas e como a forma como fazemos nossa autobiografia diz sobre muito nós e nossa imagem de nós mesmos.
Quem é você? Como você se apresenta de forma resumida? Quais são os fatores da sua vida que representam quem você é? Seu currículo profissional? Seu meio social? Sua condição? Suas aspirações? Sua idade, nacionalidade, seus hobbys ou conquistas?
Quem é você fora do seu meio ambiente convencional?
Achei o exercício de me apresentar constantemente, para pessoas diferentes, em línguas diferentes muito Interessante e a cada vez que fazia, me conhecia um pouco melhor e escolhia melhor as palavras.
Se nunca parou um tempo pra pensar sobre isso, aconselho!
Autoconhecimento exige intensão e prática!
O percurso foi praticamente todo por trilhas e estradas rurais típicas da região de Navarra.
Alguns quilômetros antes do nosso destino final, nos perdemos em uma colina e vi umas ruinas com ovelhas. Poderia jurar que vi de relance um pastor sentado. Mais uma vez me lembrei de Santiago nas ruínas da igreja com seu rebanho. Fique arrepiada.
Chegamos em seguida a Torres del rio, um mini vilarejo no topo da montanha que só tinha umas 30 construções e uma igreja. Fizemos check in no albergue Casa Mariela, que para minha alegria tinha uma piscina e reencontrei a Laura, o Jacomo e Julian.
A tarde foi de banho, lavanderia, piscina e passeio pelo vilarejo.
Andei por todas as três ruas e me sentei em umas ruínas com vista para escrever em meu Carnet du voyage.
No jantar, duas mesas compridas com todos os peregrinos confraternizando. O grupo estava cada vez maior e mais familiarizado. Muitos Americanos, Franceses, Espanhóis, Italianos e Nórdicos. Até então, eu e Thais éramos as únicas Brasileiras.
Depois do jantar voltei pro quarto, e todos estavam lá na missão “poping the bleesters“.
Descobri que não basta furar a bolha com a agulha. Precisa deixar uma linha passada dentro para drenar o líquido, se não a bolha volta no dia seguinte!
Estouramos as bolhas do pé em grupo, rimos dos próprios perrengues, fizemos um acordo comum de que ninguém estava permitido roncar e nos organizamos pra dormir no quarto de 6 beliches.
Etapa 7: Torres del Rio a Logroño
7 de julho de 2023, sexta-feira.
Acordei junto do quarto e tomei café na mini vendinha e cafeteria do hostel.
A Laura e Jacomo saíram na frente e depois, infelizmente, não nos encontramos mais! Buen Camino, amigos!
Segui com a Thais, Davis e Glenn, mais uma vez.
O dia estava ensolarado e andamos por trilhas, bosques e estradas lotadas de florzinhas coloridas por todos os lados.
Já tinha percorrido cerca de 150km e estava com bastante dor e bolhas.
Estava precisando de um dia mais leve e fiquei aliviada por ter que andar apenas 20km até Logroño.
Logroño era uma cidade com séculos de história, escrita em ruas empedradas, em pontes, albergues e vieiras. Famosa por sua Catedral e por ser considerada uma das capitais da gastronomia Espanhola. Estava bem animada para conhecer!
Chegamos perto do meio dia e fomos resolver a primeira coisa necessária quando chegamos na cidade destino: achar um lugar pra ficar.
A Espanha tem uma tradição nacional chamada siesta, onde é feita uma pausa após o almoço até praticamente o final da tarde. Acho muito válida a tradição, mas como peregrina era levemente irritante o fato dos restaurantes fecharem perto das 14:30h e depois só reabrir depois das 20h.
Estávamos famintas e ficamos um tempo tentando achar um lugar pra comer mas só achamos pinchos y viño.
Nos sentamos então pra tomar uma taça de vinho na praça principal e fizemos um tour pela Catedral românica Santa María de la Redonda.
Era bom poder falar um pouco em Português e chegamos à conclusão que, depois de tanto tempo andando, o sangue está todo no pé e causa uma preguiça de pensar muito pra conversar. True fact, haha!
Mais tarde saímos novamente e encontramos com David, Mario, Ralf e Sabine para uma típica noite de pinchos em Logroño! Uma bela noite boêmia de sexta na famosa Calle del Laurel, uma rua com mais de sessenta pequenos bares e restaurantes de rua, especializados em comidinhas e drinks. Fomos de bar em bar bebendo experimentando as especialidades de cada lugar.
Lulas e cogumelos no espero, tomate gigante com azeite, pincho de bacalhau, de camarão… uma infinidade!
Voltamos pra pensão no fim da noite, refletindo muito sobre como é natural e parte da vida os encontros e desencontros.
No caminho nunca sabemos quando será a última vez que veremos alguém e esse sentimento faz com que nosso senso de presença e atenção seja maior. Sinto que aqui as pessoas estão muito mais abertas e falam sobre suas vidas, sobre seus problemas, traumas, motivos…sem máscaras.
No caminho a única coisa que temos a oferecer é quem somos e nossa presença.
Pra que se dar o trabalho de não ser de verdade e perder a chance de ser exatamente quem é?
Percebia que os peregrinos que não entendiam essa dinâmica se sentiam sozinhos e com dificuldade de se conectar de forma genuína.
O caminho imita a vida.
Continua…